Neste artigo da série sobre adoção, vamos abordar o período do estágio de convivência, no qual algumas expectativas são frustradas em razão de muitos adotantes devolverem os adotados.
Características do estágio de convivência
“Adotar é um desafio porque relacionar-se é sempre um desafio. Temos que acolher, aceitar o outro em sua integridade, com sua beleza e originalidade mas também com suas dificuldades e limitações” (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2014).
O estágio de convivência é “o período de avaliação da nova família que deve ser acompanhado pela equipe técnica do juízo, com o intuito de verificar-se quanto à adaptação recíproca entre adotando e adotante” (VARGAS, 2018, p.279). É importante tanto para o adotante como para o adotado, pois só com a convivência diária se tem profundidade do acolhimento, do amor, da responsabilidade, ou seja, de ser família.
Contudo, em alguns casos, no estágio de convivência identifica-se a inaptidão do adotante para exercer a paternidade ou maternidade. Caso isso ocorra, é necessário que a equipe técnica interprofissional acompanhe com mais atenção dando todo o suporte para que se identifique e trate o problema de maneira correta. Se após os pareceres técnicos verificarem que ainda não é possível que aquela família tenha condições em todos aspectos para acolher o adotando, a adoção não ocorrerá.
Caso não ocorra a adoção, a criança será devolvida ao abrigo, o que pode causar alguns traumas para a criança, como por exemplo, o sentimento de rejeição. No que concerne ao adotante, este poderá continuar no cadastro de adoção se não tiver havido o trânsito em julgado, na forma do art. 197-E, §5º do ECA.
Nesse sentido, o julgado abaixo traz uma apelação que analisa a exclusão do adotante do cadastro de adoção após a devolução da criança durante o período do estágio de convivência. O recurso foi acolhido e provido e a sentença foi reformada com base no artigo supramencionado, uma vez que a devolução ocorreu antes do trânsito em julgado. APELAÇÃO CÍVEL. HABILITAÇÃO PARA ADOÇÃO. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. REAVALIAÇÃO DOS CANDIDATOS. Fundamento da sentença inadequado, tendo em vista que o artigo 197-E, § 5º do ECA, expressa que os habilitandos devem ser excluídos do cadastro nacional de adoção, bem como vedada nova inclusão, quando houver desistência dos adotantes ou devolução da criança/adolescente, depois do trânsito em julgado do processo de adoção, o que não ocorreu no caso concreto. Sentença desconstituída. Reavaliação. Apelação provida. (Apelação Cível Nº 70078440443, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Julgado em 12/06/2019).
Sobre este caso concreto, é importante destacar que o casal tinha intuito de adotar duas crianças entre 03 e 06 anos de idade. Assim, foi acolhida uma criança de 04 anos, todavia não houve adaptação da mesma, ocorrendo, assim, a sua devolução. Como esta ocorreu antes do trânsito em julgado o casal tinha o direito de continuar na fila do cadastro de adoção.
Vale trazer uma parte do relatório interprofissional transcrito pelo Desembargador José Antônio Daltoé Cezar, ao mencionar o motivo da não adaptação da criança.
Decorridos 04 (quatro) meses, o casal se mostrou incapaz de atender as necessidades do menino, apresentando manejo inadequado às condições do adotando. O relatório explanou que não houve receptividade do casal em relação à criança, levando o processo de adoção ao fracasso, culminando com o retorno do infante para o acolhimento. O laudo técnico indicou, ainda, que a adotante tinha mais preocupação com o próprio sofrimento do que com a condição da criança que havia retornado para o abrigo, referindo a necessidade de reavaliação para análise das reais condições do casal receber uma criança em sua família.
Outro ponto importante é em relação ao tempo necessário do estágio de convivência, pois não há um tempo exato, fixo, o tempo varia de acordo com o caso concreto e a necessidade de adaptação do adotando e adotante, conforme o art. 46 do ECA, já destacado. De acordo com MACIEL (2018, p.280) “é cedo para avaliar se a fixação de um prazo para a duração do estágio de convivência é uma boa medida, mas por certo isso tornará mais célere a conclusão do processo de adoção, que, em verdade, é o que se busca com esta alteração”.
Ainda, segundo MACIEL (2018, p.280) “cabe ao juiz fixar o prazo de duração do estágio de convivência, podendo dispensá-lo na hipótese de o adotando já estiver na companhia do adotante”. Essa hipótese só se configura caso haja um vínculo comprovadamente entre o adotante e o adotando, que, até então estava sob guarda ou tutela. Algumas críticas são tecidas no que concerne à mudança da legislação em relação ao período de convivência pela Lei nº 12.010/2009, tais críticas referem- se a tutela que cuida das pessoas que possui a guarda de fato de uma criança ou adolescente, pois nesse caso a lei não dispensa o estágio de convivência.
Por isso, MACIEL (2018) menciona que o legislador teve receio em deixar com os pais biológicos a decisão de colocar o filho em uma família substituta, pois, assim, poderia acarretar em uma entrega direta.
Para a autora, não se pode imaginar que toda a entrega tem segundas intenções, que a família biológica esteja agindo de má-fé, temos que pensar que a má-fé é uma exceção, sendo a boa-fé uma regra.
Contrapondo a decisão, a título ilustrativo, trazemos um caso concreto que foi objeto de pesquisa. Através desse caso, analisaremos o contexto social que envolve o período que antecede à adoção, ou seja, o estágio de convivência.
A criança permaneceu abrigada desde o seu nascimento, todavia, aos 09 anos de idade surgiu oportunidade de uma adoção internacional. Jéssica (nome fictício) tinha um comportamento muito difícil e desafiador. Durante um período teve acompanhamento de uma equipe técnica de uma determinada universidade, onde foi constatado que a criança tinha problemas como déficit cognitivo, não sabendo informar, por exemplo, os dias da semana, bem como a data do seu aniversário.
Em alguns encontros com o psicólogo, Jéssica realizou alguns desenhos que demonstram ser um modelo idealizado de família. Insta salientar que não se sabe muito bem a história de Jéssica, mas que ela possui várias versões, incluindo as diversas idades que tinha ao ser separada da sua genitora. De acordo com ALVARENGA; BITTENCOURT (2018, p.46) “a ausência de informações sobre a filiação remeteu à representação de um mundo fantástico”. Um casal resolveu adotar a criança, entretanto, após algumas semanas de estágio de convivência, Jéssica acabou empurrando a mulher.
Após reiterados fatos desastrosos, os requerentes ainda solicitaram a prorrogação do prazo para que pudessem ser analisadas as possibilidades, todavia, de acordo com a equipe técnica a rejeição mútua era visível, o que ocasionou na interrupção e o retorno de Jéssica ao abrigo.
Nesse caso houve sentimento de perda por parte da criança, por parte do casal, bem como pela equipe técnica que acompanhava o caso de Jéssica, pois a expectativa para que desse certo era muito grande, tendo em vista as diversas tentativas infrutíferas de adoção de Jéssica.
Assim, feitas as abordagens sobre o estágio de convivência, também se faz necessária uma análise sobre a devolução da criança e do adolescente.
A devolução da criança e do adolescente ao abrigo e o sentimento de rejeição
A devolução da criança e do adolescente ao abrigo se dá quando não há adaptação no período de convivência. Contudo, muitas vezes o que acompanha essa devolução é o sentimento de rejeição. Assim, a devolução traz vários prejuízos, principalmente para o adotando, tendo em vista que o mesmo já foi rejeitado pela família natural. Desta forma, de acordo com CRUZ (2014, p. 20):
A criança abandonada possui no seu interior o sentimento de abandono, por isso, não se pode permitir que a mesma volte a reviver tudo isso, devendo o adotante ser responsabilizado pela devolução por inadaptação, quando essa adaptação for de sua irresponsabilidade.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina/SC julgou procedente a indenização a fim de reparar os danos morais e materiais sofridos por uma criança após a sua devolução, conforme veremos a seguir: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de indenização aforada pelo Ministério Público.
Alimentos ressarcitórios. Devolução de infante adotando durante estágio de convivência. Indenização plausível desde que constatada culpa dos adotantes e dano ao adotando. Circunstâncias presentes na hipótese. Criança com 9 anos de idade à época dos fatos. Pais biológicos destituídos do poder familiar em 2016. Guarda provisória deferida ao agravante em outubro do mesmo ano.
Agravante decidido a prosseguir com a adoção mesmo após recente divórcio. Início da aproximação promissor. Formação de vínculo entre adotante e adotando e inserção no seio familiar. Mudança de cenário após início de novo relacionamento. Rejeição pela nova companheira. Alteração na postura do agravante. Infante que passou a ser excluído e negligenciado e já sequer residia com o agravante. Imputação da culpa pelo insucesso da adoção e problemas pessoais ao infante. Devolução do menino à instituição de acolhimento após quase 1 ano de convivência. Infante atualmente com 11 anos de idade.
Frustração e possível trauma psicológico decorrentes da rejeição. Diminuição das chances de ser adotado em virtude da idade atual e estigma de “criança devolvida”. Alimentos ressarcitórios provisórios devidos para custear tratamentos psicológicos e demais que se façam necessários. Quantum. Interlocutório que arbitrou os alimentos no valor de 4 salários mínimos. Quantia que, embora compatível com as possibilidades do agravante, revela-se excessiva aos potenciais gastos e necessidades do infante.
Redução, por ora, para 2 salários mínimos, sem prejuízo de ulterior adequação do montante e/ou fixação de indenização a fim de reparar os danos morais e materiais que venham a ser comprovados. Decisão reformada. Recurso parcialmente provido. “A intenção de adoção exige cautela na aproximação das partes, e durante o estágio de convivência que precede a adoção para adaptação da criança/adolescente à família substituta, uma vez que filhos não são mercadoria, sejam eles biológicos ou não, cabendo aos seus guardiões o dever de assistir, criar e educar, proporcionando-lhes conforto material e moral, além de zelar pela sua segurança, dentre outras obrigações. A devolução injustificada do menor/adolescente durante o estágio de convivência acarreta danos psíquicos que devem ser reparados.” TJSC, AGRAVO DE INSTRUMENTO N. 2014.014000-8, de Araranguá, rel. Des. Saul Steil, com votos vencedores deste Relator e do Exmo. Des. Fernando Carioni, Terceira Câmara de Direit o Civil, j. 16- 12-2014) – Grifo nosso.
Observa-se que a criança ficou um período considerável com o adotante, desse modo, ao ser devolvida além de todos os danos psicológicos sofridos, também foram diminuídas as chances de adoção, tendo em vista que crianças maiores são consideradas preteridas. Assim, a adoção tem um grau maior de dificuldade, uma vez que muitos pretendentes procuraram por crianças menores.
Assim, MACIEL (2018, p.282) leciona que: Quando ocorre a devolução do adotando, após longo decurso de tempo, sem motivo justo está sendo cometida grande violência contra aquele que está sendo rejeitado mais uma vez (sendo a primeira por sua família natural), ocorrendo abuso do direito por parte dos adotantes, que não estão lidando com uma coisa que não tem mais utilidade, mas com uma pessoa, detentora de sentimentos expectativas. A devolução destrói o amor próprio do adotando. (2018, p.282).
Houve a violação do direito fundamental do adotante à convivência familiar. A devolução do adotando no curso do estágio de convivência é considerado na visão MACIEL (2018, p.282) “uma violência contra a criança ou adolescente abrigado”. Os pretendentes cometeram um ato ilícito e, portanto, devem ser responsabilizados. O que foi de encontro com o julgado, tendo em vista que o Desembargador determinou a condenação em 2 salários para que fossem custeados os tratamentos psicológicos, bem como os alimentos.
O tratamento psicológico é de suma importância nessa etapa, uma vez que após a devolução da criança ou do adolescente ao abrigo, cria-se um sentimento de rejeição, e muitas vezes a criança pensa que não será mais adotada e que o abrigo já faz parte de si.
Nesse diapasão, uma pesquisa desenvolvida por Rilma Bento abordou um caso de uma criança de cinco anos de idade que merece atenção. A criança foi abrigada quando tinha cinco meses de vida, devido à situação de negligência materna que a cercava. Durante esse tempo, essa criança passou por 3 abrigos, e por duas tentativas de recolocação familiar, o que ocasionou diversas experiências negativas, contribuindo para um comportamento de negação quanto à possibilidade de vinculação a qualquer pessoa que não seja do próprio abrigo. Tais atitudes ocasionaram a necessidade de a criança passar por atendimentos terapêuticos. Além dela, o casal que tinha interesse em adotá-la também começou a realizar os atendimentos a fim de saber lidar com todo aquele contexto. Após diversas sessões com os profissionais terapêuticos, houve um período de estágio de convivência, com a concessão da guarda provisória, e após o 14º mês houve a adoção com a guarda definitiva.
De acordo com a pesquisa, o início do tratamento foi marcado por atitudes hostis por parte da criança em relação à terapeuta, contudo após a realização de algumas sessões a criança foi evoluindo e ganhando um pouco mais de confiança. Insta salientar que, sempre que a criança ia para a sessão, ela queria uma garantia que iria voltar para o abrigo no mesmo horário, o que sempre era respeitado pela equipe.
Desta forma, a criança começou a estabelecer confiança na relação e aos poucos ela foi suavizando e esquecendo os medos e seus traumas. Em relato a criança verbalizou para os seus pais “Antes de vir aqui, eu tinha um medo desse tamanho” – e os abraçou, “agora eu tenho um medo assim pequenininho”.
Desse modo, conforme leciona BAWLBY (1988, apud BENTO,2008, p.212) fora importante entender a recusa inicial da reinserção familiar, pois a criança ficou um bom tempo longe da mãe natural, sendo que as tentativas de reinserir em famílias substitutas contribuíram para desenvolver o sentimento de privação afetiva. Por isso, é muito importante que se tenha responsabilidade ao reinserir uma criança ou adolescente em uma família, pois, caso a tentativa seja infrutífera, poderá desenvolver diversas reações negativas na criança ou no adolescente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVARENGA, Lídia Levy; BITTENCOURT, Maria Inês de Freitas. A dedicada Construção de um vínculo de filiação: o papel do psicólogo em processos de adoção, 2013. Disponível em:<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679- 494X2013000100005>. Acesso em: 20 nov. 2019.
CRUZ. Sabrina D’Avila. A frustração do reabandono: uma nova ótica acerca da devolução em processos de adoção. Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2014. Disponível em:<http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/1semestre2014/trabalh os_12014/SabrinaDAviladaCruz.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2019. MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. VARGAS, Marlizete Maldonado. Adoção Tardia: da família sonhada à família possível. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. E-book.
Outras referências: 1-Lídia Levy de Alvarenga e Maria Inês de Freitas Bittencourt “A delicada construção de um vínculo de filiação: o papel do psicólogo em processos de adoção”. Disponível em:<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2013000100005>. Acesso em: 20 nov. 2019. 2-BENTO, Rilma. Família substituta: uma proposta de intervenção clínica na adoção Tardia. Disponível em:< http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- 36872008000200016>. Acesso em: 20 nov. 2019. Autora: LEICIMAR DA CONSOLAÇÃO MORAIS